domingo, outubro 22, 2006

Balanço Final da Expedição Desafio do Espinhaço

O que levaria algumas pessoas a abrirem mão do conforto e da suposta segurança de seus lares para se embrenhar em lugares desconhecidos em busca de algo intangível e muitas vezes inexplicável? O que motiva o distanciamento da família e dos amigos, a troca de cobertas quentes e camas confortáveis, por sacos de dormir e isolantes térmicos em solos irregulares de ambientes frios? Qual a graça em sentir frio, calor ou sede? Pra quê carregar mochilas pesadas, sobre os ombros em caminhos incertos, para simplesmente chegar ao topo e vislumbrar a imensidão, certificando-se que a estrada é longa e o melhor é sempre continuar? Justifica-se trocar os banhos ensaboados e a água quente por banhos de panela em águas gélidas? Justifica-se em pleno século 21, estar feliz por encontrar uma pequena sombra e poder sentar em meio ao campo cheio de carrapatos e comer com as mãos sujas, racionando os goles de água que na certa poderão fazer falta horas mais tarde? Como é possível fazer piadas de momentos em que a vida esteve por um fio? Pra quê conviver com a dor e continuar em frente quando a maioria das outras pessoas já teriam desistido? Qual a importância de dar valor a uma flor ou a um inseto? Qual a importância de arriscar coisas grandiosas ao invés de formar fila com aqueles que desconhecem o sofrimento, a dificuldade e, principalmente, o sabor da vitória?

Contraditoriamente à modernidade e às tendências, a Expedição Desafio do Espinhaço foi em busca do desconhecido e de experiências indescritíveis, indo muito além de onde os outros já haviam ido. Com o mérito de seus integrantes, alcançou seu principal objetivo, unir a pé sobre as serras da Cordilheira do Espinhaço as cidades de Ouro Preto e Diamantina em Minas Gerais.

Comparável às grandes expedições realizadas aos rincões do Brasil, a Expedição Desafio do Espinhaço, superou as dificuldades inerentes a ambientes inóspitos, trazendo à tona lugares e paisagens desconhecidas até mesmo por pesquisadores e moradores das regiões percorridas.

A concretização da maior travessia em montanha do Brasil eleva mais uma vez o nome de Minas Gerais e consolida o estado como referência na prática do montanhismo neste país de dimensões continentais. Coloca definitivamente nas páginas da história o nome de sete pessoas, que, durante 22 dias, viveram intensamente a realização de um grande sonho. Herbert Pardini, Marcelo Andrê, Marcelo Vasconcelos, Paulo Fiote, Bruno Costa e Silva, Ruslan Fernandes e Jussara Maria Rocha, diante de dificuldades e contratempos souberam superar às adversidades e alcançar um objetivo maior.

A Expedição Desafio do Espinhaço explorou trilhas, picadas e antigas estradas sobre a cumeeira de serras e, assim como as antigas expedições exploratórias, identificou os melhores caminhos, realizou estudos, levantou informações relevantes para o conhecimento científico e registrou dados de fauna e flora ao longo do percurso da travessia.

O trecho escolhido para a caminhada caracterizou-se pela diversidade de atividades produtivas que vem ao longo de séculos marcando a paisagem. As formações geológicas, associadas às variações de relevo e a presença de vegetação ora característica, ora introduzida, compõem um ambiente de beleza ímpar. Onde montanhas despertam em homens o inexplicável ímpeto da curiosidade e da fascinação, que os fazem abandonar a cômoda vida nas cidades para viver intensamente dias de contato direto com a natureza.

Contraditório é também perceber que a Serra que está lá, firme, grande, imponente há milênios, nos dias de hoje se torna frágil, vulnerável, passiva a ação do homem que nela vive ou que dela explora. Os impactos causados pela ação humana causam cortes e cicatrizes permanentes, mudam e recriam uma paisagem em poucos dias, ignorando aquilo que ao longo de eras foi cuidadosamente esculpido. Em um cenário onde se alterna a grandiosidade e a delicadeza, a exuberância das flores e a rusticidade das rochas, convivem moradores, empresários, fazendeiros, mineradores, animais silvestres e animais domésticos. Áreas de proteção administram conflitos entre aqueles que conservam e aqueles que precisam continuar vivendo. As marcas do progresso avançam e divergem opiniões, daqueles que dela necessitam e daqueles que romanticamente esperam que tudo continue como sempre foi.

Diante das dificuldades encontradas pela organização de uma expedição autônoma de 22 dias consecutivos em campo, realizada apenas com recursos financeiros próprios, é possível dizer que a Expedição Desafio do Espinhaço foi um sucesso. O planejamento realizado tendo em vista a disponibilidade de recursos financeiros, materiais e pessoais, foi cumprido a risca, sendo que as pequenas alterações no decorrer da Expedição só vieram somar aos planos iniciais.

A proposta inicial de uma Expedição de Montanhismo teve sua abrangência ampliada ao agregar montanhistas com atuação profissional em áreas que viriam complementar e agregar ao objetivos pensados na fase de elaboração do Projeto. Com isso, a proposta e sua relevância ganharam ainda mais valor, unindo à maior travessia de montanha do Brasil, um dos principais levantamentos científicos realizados ao longo da Cordilheira do Espinhaço. O fato original e diferenciado de se percorrer as serras que ligam as cidades de Ouro Preto e Diamantina através de sua cumeeira, permitiu à equipe registrar fatos e imagens e diagnosticar a atual situação de locais pouco ou nada conhecidos.

Um dos pontos relevantes da Expedição foi a adoção de estratégias de apoio à equipe de caminhada e pesquisa. Tendo em vista as características do terreno, a ausência de água nas áreas mais elevadas, a proximidade com propriedades rurais e o acesso freqüente de estradas às áreas de crista, o apoio diário de um veículo otimizou em muito o andamento da viagem. Da mesma forma, foi pensada e implementada uma estrutura logística para os períodos de autonomia da equipe de caminhada. Durante pelo menos 09 dias da Expedição, a equipe de caminhada não contou com nenhum apoio externo, sendo necessário carregar em mochilas cargueiras todo o equipamento e alimentação necessário para os dias de travessia.

Apesar da proximidade com a cidade de Belo Horizonte, foi necessário também identificar a melhor estratégia para que as informações geradas dia a dia pudessem chegar à imprensa e às pessoas que acompanhavam dia a dia a Expedição através da televisão, rádio, jornais e internet.

A opção de contar com estruturas de apoio em propriedades rurais e pequenas pousadas foi bem recebida por todos, fazendo com que após um dia desgastante de caminhada, não fosse necessário armar acampamento ou até mesmo cozinhar. Ao mesmo tempo, fez com que a Expedição mantivesse contato quase que diário com a “civilização”, mesmo em áreas menos acessíveis. Esse fato veio como saída à falta de recursos financeiros para a aquisição de equipamentos que pudessem nos propiciar a permanência constante no alto da montanha.

Destaca-se também as experiências realizadas com a alimentação durante a Expedição. Tendo em vista os recursos financeiros limitados para a compra dos artigos de alimentação e a escassa bibliografia referente a alimentos para atividades de longa duração que possuíssem características como leveza, durabilidade, resistência ao frio e ao calor e não necessidade de acondicionamento em ambientes refrigerados, foram desenvolvidos cardápios em conjunto com uma nutricionista que atendiam e até mesmo superavam o estoque energético necessário para o bom rendimento da equipe durante os dias de caminhada. O sucesso de tal experiência pode ser justificado pela mínima perda de peso dos montanhistas ao final da caminhada superior à 400km e à constante disposição por parte de todos, não sendo registrados casos de indisposição estomacal, resfriados ou outras anomalias causadas pela baixa de resistência e imunidade do organismo.

Outro destaque da Expedição Desafio do Espinhaço foi o total entrosamento entre seus participantes. A equipe formada às vésperas da Expedição, nunca havia feito em conjunto uma viagem e fez do objetivo maior, a motivação para que cada dia da Expedição fosse um dia melhor e mais alegre, mesmo naqueles momentos em que era necessário buscar força e disposição para continuar.

A conclusão desse projeto após 08 anos de sua idealização mostra que idéias devem sempre estar acompanhadas de ações. A Expedição Desafio do Espinhaço vem cumprindo seu papel de divulgação de um dos maiores patrimônios naturais do mundo, de forma consciente e responsável. Retratou paisagens desconhecidas, descobriu caminhos, atravessou matas, subiu e desceu serras, para mostrar como é possível realizar um sonho e despertar na sociedade a preocupação com uma região que abriga o maior conjunto de serras do interior do Brasil, diversas espécies endêmicas e, ao mesmo tempo, é frágil e vem sofrendo agressões constantes.

A não liberação por parte dos órgãos estaduais de meio ambiente da autorização para coleta de amostras da flora ao longo da cumeeira das serras, não impediu que os levantamentos fossem realizados. Através da observação, do registro fotográfico e em vídeo, além da ilustração científica, a Expedição pôde cumprir o objetivo específico de registro das características de fauna e flora da região percorrida, organizando informações relevantes para futuros estudos e aprofundamentos científicos.

Dentre as principais informações levantadas, destaca-se o registro de pelo menos 202 espécies de aves, incluindo a descoberta mais ao norte do país do macuquinho-da-várzea Scytalopus iraiensis (Rhinocryptidae), que foi observado e teve suas vocalizações gravadas em um brejo no topo da Serra do Cipó.

Um Relatório Técnico trazendo o diagnóstico geral das áreas amostradas pela Expedição Desafio do Espinhaço está sendo finalizado e trará os comentários a respeito da fauna e flora registradas durante o percurso, bem como, referências através de mapas, fotos e ilustrações a cerca de seu conteúdo. Este material como parte dos resultados da Expedição será entregue às principais instituições ligadas à área de meio ambiente no Estado de Minas Gerais.

Diante de tudo isso, o balanço da Expedição Desafio do Espinhaço é bastante positivo. Após 22 dias em campo a Expedição conseguiu realizar seus objetivos, sendo o principal deles a concretização da maior travessia em montanha do Brasil.

Envolveram-se no projeto diversas pessoas, instituições e empresas que, direta ou indiretamente, contribuíram para o sucesso da Expedição. Sem nenhum tipo de patrocínio a Expedição se fundamentou em um planejamento eficiente, em uma equipe formada por profissionais em diferentes áreas de atuação e em empresas que acreditaram na proposta e apoiaram o Projeto a partir de serviços e equipamentos.

A Expedição partiu de Belo Horizonte / MG, no dia 1º. de setembro de 2006, retornando à capital mineira no dia 24 de setembro. A travessia entre as cidades de Ouro Preto e Diamantina – dois patrimônios da humanidade – se deu entre os dias 02 e 23 de setembro, percorrendo 416 km em 19 dias de caminhada e 3 dias de descanso.

A equipe de montanhistas percorreu em média 21,9km por dia, sendo que boa parte dos caminhos utilizados eram desconhecidos, sendo necessário o uso da navegação através de mapas, bússola e GPS para a identificação do melhor trajeto. Foram totalizadas 98 horas e 31 minutos de caminhada, mantendo-se a média de 4,2 km/h. Uma média bastante satisfatória tendo-se em vista as dificuldades impostas pelo terreno e pelo clima. Responsável pelo suporte à Expedição, o veículo de apoio percorreu 1750 km por estradas pavimentadas e não pavimentadas, ao longo de pelo menos 15 municípios que margeiam a Cordilheira do Espinhaço. O registro do dia a dia da Expedição, das paisagens e da fauna e flora ao longo do percurso, gerou 22 horas de gravação em vídeo, 25 filmes em slide, 1780 fotos digitais, pelo menos 35 ilustrações científicas feitas em campo e em estúdio. 202 espécies de aves identificadas.

A Expedição contou com 175kg de alimentação, incluindo ainda as refeições feitas em propriedades rurais e pequenas pousadas que serviram de apoio para o Projeto. Um cardápio especialmente desenvolvido para o tipo e duração do esforço, fez com que toda a equipe chegasse ao final da Expedição em excelentes condições físicas e psicológicas, estando a cada dia em condições de caminhar com média de 25 quilos às costas e consumo de energia de aproximadamente 3800 calorias.

O trajeto escolhido pela Expedição buscou acompanhar sempre que possível às cristas da Cordilheira do Espinhaço, caminhando em altitudes que variaram entre 915 e 1854 metros de altitude. As imponentes paisagens da Cordilheira do Espinhaço se sucederam diariamente, revelando cenários de grande beleza e diversidade natural.

Além dos aspectos que fazem dessa região do Brasil um patrimônio da humanidade como Reserva da Biosfera, outros aspectos chamaram a atenção da equipe. Um deles remete ao impacto crescente das atividades minerárias, principalmente no trecho correspondente ao Quadrilátero Ferrífero, a substituição da mata nativa pelo plantio do eucalipto, a ocupação desordenada de áreas rurais com atividades agropecuárias não sustentáveis, a presença de animais domésticos em áreas de conservação, a utilização de áreas de campo como pastagens, ampliando os riscos de incêndios criminosos. Percebeu-se também que, ao mesmo tempo que alguns moradores reconhecem a importância dos recursos naturais existentes e apontam o crescente processo de degradação, não vêem nos órgãos de fiscalização parceiros para uma eventual mudança de postura. Ficou evidente também que as grandes empresas, de um modo ou de outro, acabam conseguindo de forma legal expandir suas áreas de influência e que o pequeno proprietário, muitas vezes sem títulos de sua propriedade, se vê cada dia mais desamparado.

Visando a conservação da Cordilheira do Espinhaço e a harmonia entre atividades produtivas, moradores e meio ambiente, torna-se necessário e urgente a adoção de políticas públicas voltadas à área de conservação e a substituição de atividades econômicas impactantes por soluções responsáveis e agregadoras. O aspecto cultural é outro fator importante. Os mineiros precisam olhar para suas montanhas com um olhar diferenciado. As montanhas não podem ser vistas apenas como obstáculos. São testemunhas vivas de todo um processo evolutivo, são guardiãs de riquezas cobiçadas pelos homens, são sagradas em sua imponência.

Dando continuidade às ações previstas pelo Projeto, está em fase de organização um evento a ser realizado na cidade de Belo Horizonte, trazendo os fatos e imagens que fizeram da Expedição Desafio do Espinhaço uma experiência única. Com a mesma disposição que a Expedição uniu forças e recursos e realizou um projeto idealizado há anos, parte agora para a captação de recursos, buscando viabilizar as publicações, exposições e edição do documentário referentes aos dias vividos na montanha.

Agradecemos a todos aqueles que acompanharam através do Blog, das reportagens em jornais, dos sites, nos programas de televisão, o dia a dia dessa Expedição. Dos mais próximos aos mais anônimos, tenham certeza que o sucesso do que foi feito é compartilhado com todos, principalmente com aqueles que compreendem a dimensão do que foi realizado.


Um cordial abraço a todos.
Equipe Desafio do Espinhaço.
Texto: Herbert Pardini